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Biotecnologia brasileira desenvolve aplicações práticas na área da saúde

Transplante de órgãos de suínos para humanos e terapia para tumores cerebrais em crianças beneficiarão pacientes com doenças graves

São Paulo, 21 de dezembro de 2022 – Biólogos brasileiros se valem cada vez mais de técnicas de edição do DNA, como o Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas (Crispr) e DNA recombinante, para o desenvolvimento de tecnologias de ponta com aplicação prática na saúde e outras áreas.

Duas pesquisas em Biotecnologia originadas na Universidade de São Paulo (USP) caminham para o desenvolvimento de procedimentos e drogas que poderão beneficiar pacientes com doenças graves. O Programa de Xenotransplante, do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP, tem como objetivo permitir que órgãos de suínos (porcos) geneticamente modificados venham a ser transplantados para humanos. O outro estudo, em desenvolvimento pela startup Vyro, fundada por cientistas da USP, prevê a produção de uma droga – a partir do vírus zika brasileiro modificado – contra tumores cancerígenos do sistema nervoso central, principalmente de pacientes infantis.

A revolucionária ferramenta Crispr (em inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) foi desenvolvida pela cientista francesa Emmanuelle Charpentier e pela norte-americana Jennifer Doudna, o que lhes valeu o Prêmio Nobel em 2020. O Crispr somou-se a outras técnicas já conhecidas de edição, como a do DNA recombinante, ampliando as possibilidades do que no passado era conhecido como “engenharia genética”: a modificação do DNA, o ácido desoxirribonucleico, que armazena a informação genética dos seres vivos.

A Dra. Mayana Zatz, bióloga diretora do CEGH-CEL, afirma que os pesquisadores do laboratório utilizam a técnica de Crispr no Programa de Xenotransplante, termo que se refere a transplantes de órgãos entre espécies diferentes.

“Esse projeto, que foi iniciado como uma coisa bastante futurística, se mostrou muito mais próximo da realidade. No final do ano passado e início desse ano, foram feitos dois transplantes de rins de suínos, nos EUA, em pessoas em morte cerebral. E se viu que o rim funcionou por cerca de três dias”, afirma Mayana Zatz, em entrevista para a revista O Biólogo, do Conselho Regional de Biologia (CRBio-01). “E depois foi feito um transplante cardíaco usando o coração de um suíno num paciente vivo. Ele estava em fase terminal, ligado a aparelhos, e foi por isso que foi permitido fazer esse experimento em um humano”.

O transplantado conseguiu sobreviver por 60 dias com o coração de um suíno geneticamente modificado. O resultado foi considerado muito positivo, quando comparado à sobrevida de só 18 dias do paciente do primeiro transplante de coração (de humano para humano) em 1967.

Os suínos têm os órgãos muito semelhantes aos dos humanos e há uma compatibilidade de 98% entre o genoma das duas espécies. Mas os transplantes de órgãos de suínos normais (não geneticamente modificados) são rejeitados pelo organismo humano.

Por meio da técnica de Crispr, os pesquisadores do CEGH-CEL silenciaram os genes dos suínos que provocam rejeição aguda de órgãos transplantados para humanos. Eles já conseguiram criar embriões de suínos com esses genes silenciados, que estão armazenados no laboratório.

O próximo passo, explica a bióloga, será inserir esses embriões em barrigas de aluguel, no útero de porcas. Mas antes será necessário construir biotérios de porcos com estrito nível de segurança contra infecções, as chamadas pig facilities.

Segundo Mayana Zatz, o planejamento é construir duas pig facilities, uma menor ligada ao Instituto de Biociências (IB) da USP e outra mais ampla no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Ela estima que as estruturas estarão prontas, na melhor das hipóteses, no fim de 2023. A previsão é que os experimentos de inseminação das porcas aconteçam a partir de 2024.

Se bem-sucedida, a pesquisa permitirá a realização de transplantes de rim, coração, pele, córnea e talvez fígado de suínos para humanos, mitigando – ou mesmo resolvendo – o principal gargalo para os procedimentos, que é a falta de órgãos disponíveis para doação.

No Brasil, o CEGH-CEL é o único com pesquisas avançadas com xenotransplante. No mundo, centros nos EUA, China, Alemanha e Nova Zelândia estão trabalhando com a tecnologia.

Vírus oncolítico

Mayana Zatz, o Prof. Dr. Oswaldo Keith Okamoto, do IB/USP, e a Dra. Carolini Kaid Davila, todos biólogos, descobriram que o vírus zika brasileiro pode ser usado como ferramenta no tratamento de tumores agressivos do sistema nervoso central. O estudo foi publicado em abril de 2018 na revista Cancer Research, da American Association for Cancer Research, que dedicou a capa da edição à descoberta.

Na pesquisa, que fez parte do doutorado de Carolini Kaid no IB/USP, foram inseridas células humanas tumorais nos cérebros de camundongos. Em seguida, injetou-se uma dose única de vírus zika nos cérebros com tumor. Três semanas depois, os vírus provocaram a remissão total dos tumores, inclusive de outros órgãos metastáticos.

No pós-doc em 2020 no CEGH-CEL, Carolini Kaid e equipe continuaram a pesquisa em cachorros que já tinham tumores no sistema nervoso central. Eles injetaram vírus zika na nuca (intratecal) dos animais e o resultado foi a redução em até 5 cm dos tumores e a melhora clínica dos cães, que voltaram a fazer atividades rotineiras, como comer sozinho, levantar a cabeça e responder aos tutores.

A pesquisa também reafirmou a segurança da terapia. Os cachorros não ficaram doentes com zika, confirmando o resultado observado nos camundongos, que também não apresentaram o vírus na corrente sanguínea. Além disso, os cães não tiveram qualquer efeito colateral do tratamento. O estudo foi publicado na revista Molecular Therapy em maio de 2020.

Com resultados tão promissores, os cientistas envolvidos na pesquisa decidiram abrir uma empresa para o desenvolvimento de uma droga para tratamento de tumores do sistema nervoso central em pessoas, particularmente em pacientes infantis.

startup Vyro foi criada em fevereiro de 2021 e tem como sócios-fundadores os três biólogos envolvidos diretamente na descoberta, um quarto biólogo (Dr. Luiz Caires), um farmacêutico (Dr. Ernesto Goulart) e um administrador (Hugo Cabrera). A empresa está incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) da USP/Ipen, no campus da USP, que abriga dezenas de startups de Biotecnologia e outras áreas.

O desenvolvimento de uma droga requer testes clínicos em pessoas. Como não é possível usar o vírus natural selvagem em humanos, a equipe da startup, que conta com dez profissionais, gerou um vírus geneticamente modificado, seguro e qualificado para aplicação clínica.

A empresa encomendou junto a um fornecedor local uma sequência genética (genoma) do zika vírus brasileiro, colocada na forma de um anel dentro de um plasmídeo. Por meio da técnica de DNA recombinante, Carolini Kaid e equipe recortaram a sequência por engenharia genética, modificando o genoma do vírus.

O zika é um vírus de RNA, que, como se sabe, é produzido a partir de um DNA. Com o DNA geneticamente modificado no plasmídeo, a equipe gerou o RNA do vírus zika sintético.

“O RNA replicou e produziu vírus zika ativo modificado e 100% sintético. Ele não causa a doença, porque é modificado. Nossos testes em células in vitro demonstraram que esse vírus zika sintético é incapaz de infectar células normais, como neurônios. Ele só infecta, e destrói, as células de tumores do sistema nervoso central”, declara Carolini Kaid para a revista O Biólogo.

A droga em desenvolvimento se enquadra na categoria de “vírus oncolítico”, que são vírus modificados em laboratório que atuam sobre células cancerígenas sem afetar células saudáveis, uma nova fronteira do tratamento oncológico.

O desenvolvimento está hoje na fase pré-clínica, de ensaios em camundongos, que estão confirmando a eficácia e segurança do tratamento. Carolini Kaid acredita que, em alguns anos, a empresa produzirá uma droga para tratamento de câncer de cérebro em geral, em particular de tumores agressivos em pacientes infantis.

Como a cepa brasileira do vírus zika tem um tropismo natural pelo cérebro, a futura droga provavelmente será de fácil administração, injetável na corrente sanguínea do paciente.

Antes do lançamento ainda há um longo caminho a percorrer. O cronograma de desenvolvimento prevê que os testes pré-clínicos se estendam até o fim de 2023. O início dos ensaios clínicos em humanos deve acontecer em meados de 2024. A fase 1 (de segurança) e fase 2 (de efetividade) dos estudos clínicos estão previstas para durar até o fim de 2025, quando deve começar a fase 3 (multicêntrico), que consiste na repetição dos ensaios em vários centros em diferentes países.

A nova edição da revista O Biólogo tem como matéria de capa uma ampla reportagem sobre as pesquisas de ponta em Biotecnologia. Leia AQUI.

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