Sem aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o Ministério da Saúde estuda derrubar em editais de compras a exigência de documento que afere a autenticidade de remédios importados. Sem ele, há risco de entrada de drogas falsificadas.
Ao jornal Folha de S. Paulo, o ministro Ricardo Barros (Saúde) disse que a medida valerá apenas para compras determinadas judicialmente –que no ano passado somaram R$ 1 bilhão.
Nesses casos, há dispensa de licitação —ocorre cotação entre fornecedores e vence o que oferecer menor preço.
A decisão é mais um capítulo de um imbróglio envolvendo ministério, Anvisa, fabricantes e distribuidoras de remédios para doenças raras, que se arrasta desde outubro passado e que se transformou em uma guerra judicial.
Por causa do embate, pacientes com doenças raras ficaram sem medicamentos. Segundo associações, 13 morreram enquanto aguardavam pelas drogas –mesmo com liminares favoráveis a eles.
Em rota de colisão com a Anvisa, Barros, que deixa o ministério no fim do mês, sugeriu aos pacientes que processem a agência por emperrar a importação de remédios já comprados pela pasta.
O pivô da polêmica é um documento exigido pela agência reguladora para liberar a importação de medicamentos, a DDR (Declaração de Detentor de Registro).
Concedida pelas fabricantes às distribuidoras, ela é uma espécie de RG do medicamento, a garantia de que ele não é falsificado.
Em outubro, o Ministério da Saúde contratou por R$ 20 milhões a Global Gestão em Saúde S.A para entregar medicamentos (Aldurazyme, Fabrazyme e Myozyme) requeridos por decisão judicial. O critério foi o menor preço.
A fabricante dos remédios, Sanofi Genzyme, também participou do pregão e ficou em segundo lugar, com preço 0,5% superior. O ministério diz que, com a escolha, economizou R$ 400 mil por ano para tratar 303 pacientes.
Ocorre que, por não ser credenciada pela Sanofi, a Global não tem a DDR, e a licença de importação foi negada pela Anvisa. A Global recorreu, e o Tribunal Regional Federal (TRF1) liberou a licença sob o argumento de que a decisão da agência fere o direito à livre concorrência.
Na sexta (16), outra decisão do TRF1 deu prazo de três dias para que agência concedesse a licença, sob pena de prisão em flagrante de Jarbas Barbosa, diretor-presidente da Anvisa, e multa diária.
Na segunda (19), a agência liberou a importação, mas diz que não assegura que os lotes sejam verdadeiros. A Global alega ter parceiras credenciadas pela fabricante em outros países e que a exigência da DDR favorece a formação de monopólios.
Para o ministro Barros, o documento é uma manobra jurídica da indústria. Toda confusão, diz ele, foi gerada pelo fato de o ministério ter buscado o menor preço no mercado e contrariado os interesses da indústria. “Criaram isso para venderem a cada país com o preço que querem e para o representante que querem. Na África, vendem a 200, no Brasil, a 3.000, e nos EUA a 20 mil.” Mas, sem a DDR, não há risco de os pacientes receberem medicamentos falsificados, como alerta a Anvisa?
“O juiz manda e eu cumpro. A Anvisa deveria fazer o mesmo. Quando eu coloco R$ 400 mil na conta de um paciente para fazer tratamento experimental na Tailândia, que segurança eu tenho?”
Para Jarbas Barbosa, é louvável que o ministério busque o menor preço, mas a agência não pode abrir mão da qualidade e da segurança.
“Não se trata de uma exigência burocrática. É a única garantia de que se trata de um medicamento original.”
Os presidentes do grupo FarmaBrasil, Interfarma, ProGenéricos e Sindusfarma divulgaram nota em defesa da Anvisa. Dizem que a cobrança não é mera questão comercial e chamam de “contrassenso” a pressão pela dispensa de exigência da DDR.
“Os altos padrões de qualidade e controle precisam ser mantidos e aprimorados, e não afrouxados, para que a Anvisa continue a ser um alicerce do sistema de saúde no Brasil, zelando pela dispensação de medicamentos seguros e eficazes”, diz a nota.
Também em nota, a Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Raras afirma que a falta de documentos como a DDR “poderá acarretar prejuízos irreparáveis aos pacientes”, pois não haverá garantia de origem nem responsabilização e controle de qualidade dos produtos adquiridos.”
“A economia que o Ministério da Saúde está fazendo pode custar vidas”, diz Renato Trevellin, pai de Gianlucca, 5, que tem atrofia muscular espinhal, doença rara e que afeta a musculatura. O menino ficou 340 dias sem a medicação, mesmo com decisões judiciais obrigando o governo a ofertá-la.
Com pouco mais de duas semanas voltando a usar o medicamento, o menino voltou a sorrir, movimento que tinha perdido no ano passado.
ENTENDA O IMBRÓGLIO
1. Contrato
O Ministério da Saúde contratou em outubro a Global Gestão em Saúde S.A. para a compra de três medicamentos para doenças raras, determinada por decisões judiciais (Aldurazyme, Fabrazyme e Myozyme)
2. Concorrência
A francesa Sanofi Genzyme, fabricante da droga, também participou do pregão e ficou em segundo lugar, com preço 0,5% superior. Ela alega que a Global não é cadastrada como sua distribuidora
3. Entrave
O ministério antecipou pagamento de R$ 20 milhões à Global, mas os remédios não foram entregues porque a empresa não apresentou à Anvisa um documento exigido para a liberação da importação (DDR)
4. Decisão judicial
A Global obteve liminar do Tribunal Regional Federal (TRF-1) obrigando a Anvisa a liberar a importação dos remédios —o que foi feito na última segunda (19) pelo presidente da agência, Jarbas Barbosa, sob o risco de ser preso e de pagar multa diária
O QUE DIZEM OS ENVOLVIDOS
Anvisa
Agência afirma que o documento, emitido pela fabricante da droga, é necessário para garantir a qualidade e a eficácia dos medicamentos e uma proteção contra eventuais falsificações
Empresa vencedora
A Global argumenta que o documento é uma proteção comercial à farmacêutica Sanofi e favorece a formação de monopólios
Governo
O ministro Ricardo Barros alega que, com a escolha da Global, conseguiu uma economia de R$ 400 mil para atender 303 pacientes por ano. Para ele, a exigência da DDR fere o princípio da ampla concorrência
Indústria e pacientes
Entidades representativas da indústria e de pacientes com doenças raras alegam que a liberação de medicamentos sem a DDR favorece falsificações e coloca em risco a segurança dos doentes.
Fonte: Folha de S. Paulo