Por Dr. Deivis O. Guimarães*
Este artigo opinativo analisa, de forma acessível, porém crítica, como o Brasil tem investido em biotecnologia voltada à saúde em comparação a outros países, desde vizinhos latino-americanos como Argentina e Chile, até potências como Estados Unidos e nações europeias, e discute o preço que pagamos por não priorizar essa área. Também abordaremos exemplos reais de perda de talentos e tecnologias, além dos riscos à soberania nacional ao negligenciar a biotecnologia como estratégia de Estado. Os dados e fontes recentes dão embasamento a essa reflexão urgente.
Biotecnologia em Saúde: Oportunidade Perdida ou Caminho para a Soberania Nacional?
A biotecnologia em saúde engloba pesquisas e produtos como medicamentos biotecnológicos, vacinas e diagnósticos avançados, e é vista mundialmente como um setor estratégico. Países que investem pesado nessa área colhem benefícios econômicos e sociais: geração de empregos qualificados, inovação farmacêutica e maior autonomia sanitária.
América Latina: foco estratégico com menos recursos
O Brasil investe aproximadamente 1,2% do PIB em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), superando Argentina (0,5%) e Chile (0,33%). Apesar disso, falta foco. A Argentina, com menor investimento absoluto, criou uma Lei de Biotecnologia, incentivos fiscais e incubadoras especializadas. Possui mais de 340 empresas biotecnológicas mapeadas. O Chile desenvolveu hubs como os de Santiago e tem cerca de 100 empresas no setor. O Brasil estima ter pouco mais de 500, mas carece de articulação e estratégia integrada para transformar ciência em inovação.

Brasil versus potências globais: um abismo estrutural
Quando comparamos o Brasil com potências como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e França, o contraste nos investimentos e na estrutura da biotecnologia em saúde é marcante. Essas nações desenvolvidas possuem orçamentos e infraestrutura muito superiores, além de um ambiente fértil para a inovação na interface academia-indústria.
Os Estados Unidos investem cerca de 3% do PIB em P&D, destinando US$ 47 bilhões/ano apenas ao NIH para saúde. A Alemanha e Reino Unido investem acima de 2,9% do PIB, com infraestrutura de ponta e clusters que integram academia, governo e indústria. O Brasil, por sua vez, tem boas instituições como Fiocruz e Butantan, mas enfrenta cortes, descontinuidade de programas e um ecossistema incipiente de startups deep tech. O resultado é um país com talento científico reconhecido, mas sem musculatura para competir globalmente.

O custo da estagnação: fuga de cérebros e tecnologias perdidas
A migração de pesquisadores é alarmante, estima-se que mais de 6.700 cientistas brasileiros deixaram o país nos últimos anos, e muitos foram formados com recursos públicos e hoje atuam em instituições de ponta no exterior. Isso representa desperdício de capital intelectual e investimento nacional. Além disso, 92% das patentes relacionadas à flora brasileira foram registradas fora do país, oque evidência a biopirataria e ausência de estratégias para transformar biodiversidade em bioeconomia.
A dependência tecnológica também atinge o setor farmacêutico., onde o Brasil importa mais de 90% dos insumos ativos de medicamentos. Entre 2015 e 2021, o venture capital global investiu US$ 35 bilhões em biotecnologia, e nas startups brasileiras, apenas US$ 32 milhões foram destinados, ou seja, menos de 0,1%.
Do ponto de vista industrial e econômico, permanecer como importador líquido de tecnologia nos condena à dependência eterna. Hoje, por exemplo, a indústria farmacêutica brasileira está entre as 10 maiores do mundo em faturamento, porém baseada majoritariamente em formulações e genéricos, com matéria-prima externa. Isso significa que, sem os insumos de fora, para praticamente na hora, e se amanhã houvesse uma ruptura diplomática ou comercial com países fornecedores, não teríamos como produzir medicamentos essenciais para nossa população. Soberania vai além de tanques e alimentos, inclui vacinas, anticorpos, kits de diagnóstico, enzimas industriais e tudo que a biotecnologia pode prover.
Soberania e segurança nacional em risco
A pandemia de Covid-19 escancarou a fragilidade do país, mesmo apesar de centros de excelência, o Brasil dependeu de vacinas, insumos e tecnologias estrangeiras, e a falta de autonomia atrasou a resposta nacional e evidenciou a vulnerabilidade em crises sanitárias. O domínio da biotecnologia representa mais do que desenvolvimento: é uma questão de soberania. Ter ou não acesso rápido a vacinas, anticorpos ou kits diagnósticos pode definir o rumo de uma nação em momentos críticos.
Não investir em biotecnologia, portanto, fragiliza o Brasil em vários níveis: saúde da população sob risco, economia refém de importações e oportunidades de ouro escorrendo pelos dedos. Também significa desperdiçar o potencial de sermos protagonistas em áreas onde temos vantagens comparativas, como nossa biodiversidade única e a criatividade de nossos pesquisadores. Em última instância, é um risco para o próprio desenvolvimento sustentável e independente da nação. País que não domina tecnologias-chave acaba dependente de quem domina, e essa relação raramente é igualitária.
O futuro exige ações estruturantes e vontade política
O panorama traçado deixa claro que o Brasil está atrasado na corrida da biotecnologia em saúde, mas também aponta caminhos para recuperar o terreno perdido. Temos riquezas e competências únicas, da Amazônia à competência em imunologia do Butantan/Fiocruz, porém precisamos convertê-las em inovação, com investimento pesado e contínuo. Isso inclui aumentar significativamente o orçamento público para ciência, criar incentivos robustos para a iniciativa privada investir em P&D, facilitar parcerias público-privadas e valorizar carreiras científicas para reter talentos.
A comparação com Argentina e Chile mostrou que vontade política e foco estratégico fazem diferença mesmo com recursos limitados. Já o espelho dos EUA e Europa evidenciou quanto ainda precisamos avançar para competir globalmente.
Como profissionais de saúde, da indústria farmacêutica ou cidadãos interessados, devemos cobrar que a biotecnologia seja tratada como política de Estado. Não se trata de um capricho acadêmico, mas de assegurar que o Brasil tenha os meios de produzir conhecimento e soluções para seus próprios problemas de saúde, e porque não, para os do mundo.
A história recente nos ensinou que ciência salva vidas e define rumos de nações, e ainda dá tempo de o Brasil investir em seus pesquisadores para que o próximo grande avanço em vacinas, medicamentos ou bioindústria traga o carimbo “Tecnologia Brasileira”. O que não podemos é continuar perdendo brilhantismo e soberania por miopia e omissão. Biotecnologia em saúde não é despesa: é investimento no futuro do país.
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*Pesquisador e Diretor de pesquisa da Gon1 Biotech
Doutor Honoris Causa em Biotecnologia aplicada em saúde
Doutorando em gestão e tecnologia industrial: desenvolvimento de novos produtos